Quilombolas na Costa de Conde Paraíba
Rico, diverso e plural, o Quilombo Ipiranga, no município de Conde, tem resistido por mais de 200 anos e traçado estratégias para o enfrentamento da exclusão social e da violência as quais foram fadadas as pessoas pretas e pardas no Brasil. Como a participação feminina no mercado de trabalho atravessa diretamente as mulheres negras, segundo análise da Fundação Getúlio Vargas publicada em 2022, este cenário é mais preocupante para essa parcela da população. Por isso, dentro do Ipiranga, um dos compromissos das lideranças é fazer com que as mulheres tenham renda e autonomia.
O dia começa cedo para aqueles que se sustentam do cultivo e da venda de frutas no quilombo. Além de garantir a subsistência dos produtores, agricultura familiar e pesca são a principal fonte de renda fixa da comunidade, que se vale da sazonalidade dos plantios para ter lucro o ano todo através do comércio dos frutos que a fértil terra condense dá. Juntos, os pomares de coco, manga, banana, fruta-pão, sapoti e caju garantem o sustento de 80% das 137 famílias que habitam a comunidade quilombola, localizada na Mata Paraibana.
Para os 20% que não trabalham com agricultura familiar, os proventos vêm de diferentes meios. Do trabalho doméstico nas casas e cozinhas de outrem, da elaboração de biojoias feitas com o que vem da natureza e até mesmo da produção de licores e remédios extraídos de raízes. É que no Quilombo Ipiranga quase tudo cai do pé e o que não cai, sai da terra.
A pouco mais de 30 quilômetros da capital, o quilombo fica a cerca de 40 minutos do centro de João Pessoa e, quando foi fundado, a família de Ana Lúcia do Nascimento, a Mestra Ana do Coco, estava lá. Acompanhados de outras seis famílias, os ancestrais de Ana criaram uma comunidade pronta para dar conta da própria subsistência, mas, acima de tudo, que fosse efeito da resistência daquele povo. Com isso, teve início o tempo do plantio e também da colheita no território que, mesmo com incipientes tentativas de descaracterização do espaço, tem mantido vivas as tradições semeadas há 203 anos na sagrada terra do Ipiranga.
“O quilombo é tudo. É um ambiente de integração. Um lugar onde a gente vive muito bem, obrigada. Existimos do que a terra dá e é tanto que ainda sobra para os outros. Aqui, perpetuamos nossa história e materializamos nossos costumes através de nossas produções. Produzimos biojoias, alimentos e até mesmo um óleo sagrado com propriedades que nos fazem bem por dentro e por fora”, explica a líder quilombola. Além de ser responsável pela loja de acessórios Duá, Ana Lúcia também organiza a extração do azeite de batiputá, conhecido por seu potencial anti-inflamatório e cicatrizante.
Produto extraído da terra fortalece a economia
Segundo Ana, a produção do óleo é uma tradição que foi passada de mãe para filha nos últimos 200 anos. “Quando eu era pequena, as pessoas batiam na porta da minha avó trazendo o óleo. Ela não fazia, mas ganhava das outras mulheres. Um dia resolvemos produzir e, há cinco anos, começamos a comercializar. Tem feito muito sucesso”, comemora.
Pelo tamanho, ninguém imagina que o batiputá guarde tanta força. Mas a Mestra Ana explica que assim como nos menores frascos se escondem os melhores perfumes, também nas menores sementes se escondem os mais potentes óleos. Este é o caso do óleo batiputá que, pela dificuldade de sua extração, tem o litro orçado em R$ 500.
Ana conta que o processo de produção começa na Quarta-feira de Cinzas, com a colheita das sementes que dão em uma pequena árvore de flores amareladas. Como as mulheres do Ipiranga adentram a mata para procurar os arbustos, um ou dois homens da comunidade as acompanham nessa fase para garantir a segurança do grupo. Mas a participação masculina na fabricação do óleo se encerra nisso. Da colheita em diante, tudo é organizado exclusivamente por mulheres.
“É um período muito especial. Vamos eu e as outras mulheres do quilombo para a mata atrás das sementinhas e, depois, ficamos juntas durante a extração. É muito trabalhoso, mas também muito bom”, relata.
Nos 40 dias que antecedem a Paixão de Cristo, as sementes são amassadas em um pilão e, depois, levadas ao fogo por seis horas. Moradora do Ipiranga, Marcele Barbosa auxilia Mestra Ana nessa jornada. Ela conta que a quantidade de sementes coletadas é sempre grande, mas os resultados não. Este ano, por exemplo, os 40 dias de preparo do óleo se resumiram em algo entre oito e 10 litros do alimento, cujo sabor marca os que ainda não provaram. “Pode parecer caro, mas vale cada centavo. É demorado e trabalhoso de fazer”, relata Marcele.
Como recompensa pelo trabalho, a produção final é rateada entre as mulheres que participaram do processo. Assim, cada uma delas é capaz de decidir o que fará com seu vidro de batiputá. E, de uma forma ou de outra, o óleo de batiputá se faz presente na vida dessas mulheres ao longo do ano todo, seja pelo consumo ou pelo comércio do precioso óleo que, de acordo com Mestra Ana, já chegou até mesmo a cozinhas de restaurantes renomados em outros cantos do país.
“A produção do óleo é, de certa forma, uma maneira de oferecer autonomia a essas mulheres. O produto elas têm e, então, cada uma decide o que faz com isso”, analisa Ana ao contar que, na tentativa de tirar as mulheres do Ipiranga de subempregos e incluí-las em ocupações melhores, tem levado equipes de capacitação profissional para dentro do quilombo.
Ancestralidade ganha força e estimula gerações
Na safra deste ano, a empreendedora da loja de cosméticos naturais Ayó, Thainá Mendes, se juntou às quilombolas do Ipiranga para o manejo do batiputá (que depois de envasado é vendido como “batibutá”, como falam os quilombolas). A experiência foi algo transformador e, na opinião de Thainá, pode ser resumido como “a vida que faz dança com a ancestralidade e traz as sonoras vozes das mulheres pretas quilombolas, que têm história e almejam que suas mãos calejadas não caiam no esquecimento”.
“É raiz ali. Dores amargas, mas que se intimidam na bravura das pretas que cantam enquanto trabalham. Elas são as rainhas do óleo. Elas são as mãos da delicadeza. Enquanto o pilão ecoa a grandeza, lindas mulheres que nos tiram do cômodo deixam seus pesos no vento e os traços do sustento são pintura viva. Quem foi no Quilombo Ipiranga voltou a semente para que essas mulheres cresçam e existam em outro lar”, garante ao afirmar que esta é uma geração que, ao plantar seu sustento, supera os pagamentos aos quais seu povo foi submetido.
Cooperação
A comunidade do Ipiranga é um dos 39 quilombos quantificados pela Secretaria da Mulher e da Diversidade Humana e parte dos três que integram a comunidade quilombola de Conde. E, embora Gurugi, Ipiranga e Mituaçu não sejam todos vizinhos, a integração entre os habitantes de cada quilombo é constante, sobretudo para articulações que viabilizem a sustentabilidade de cada um deles. Foi assim que o Mercado de Artesanato do Gurugi surgiu e se mantém. É lá que Marcele Barbosa vende as biojoias que dona Ana produz diariamente com as sementes nativas encontradas no território quilombola do Ipiranga. É lá também que as Mulheres Negras do Campo comercializam alimentos naturais feitos com raízes e outros quilombolas ocupam boxes com artesanatos, por exemplo.
“Aqui contribuímos uns com os outros. Se eu não tenho o que o cliente procura, mas alguém tiver e conseguir vender, é um ganho para mim também. Quando um de nós vence, todos vencemos juntos”, diz Marcele ao refletir sobre a importância da união de forças para a sobrevivência social e econômica não só do Ipiranga, mas dos demais quilombos de Conde.
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